sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Critica de Ferreira Pinto ao trabalho de DINA DE SOUZA e a expo MITOFACTOS O'PORTO


Dina de Souza
Artista Plástica

“Para curar-me, o feiticeiro
pintou tua imagem
no deserto:
areia de oiro - teus olhos,
areia vermelha - a tua boca,
areia azul para os cabelos,
e branca, branca areia, para as minhas lágrimas.

Pintou durante o dia, e tu
crescias como uma deusa
sobre a imensa tela amarela.
E pela tarde o vento dispersou
tua sombra colorida.

E, como sempre, na areia
Nada ficou senão o símbolo das minhas lágrimas:
areia prateada”.

Herberto Hélder, in Poesia Toda.


Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás… há tantos anos, que nem o tempo existia ainda…era o princípio dos tempos, o tempo da “criação”.

Ao lançar um olhar sobre a pintura de Dina de Souza, ficou-me desde logo a sensação de estar a visitar um espaço-tempo longínquo – o da “criação”.

É da criação plástica de Dina de Sousa, deste conjunto de obras, muitas das quais de cariz surrealista, que acabei de visitar e que me disponho a falar, deixando-me levar pelo sentimento que experimento face à sua obra.

Dina de Souza nasceu em Niassa, Moçambique, um território despovoado mas possuidor de rara beleza, considerado a última selva natural do mundo ou uma espécie de reminiscência do jardim de Éden africano.

Terá este “Éden africano” durante o tempo de criação do seu trabalho “ Divagando sobre o Éden”, emergido do imaginário da artista? À parte esta associação, seria injusto se não fizesse referência a este tema - o “Éden”, que considero central no seu imaginário interno global, uma autêntica âncora, qual matéria-prima que a artista na sua mais profunda intimidade, decide trazer à superfície e numa espécie de bailado cosmogónico proporcionar visões de tempos de um tempo muito para além da memória. 

Será, creio bem, um “estado de alma”, uma forma particular de transportar para este tempo, sensações e emoções de um tempo do Grande e Eterno Tempo, um compromisso interior que procura exteriorizar com sensibilidade e frontalidade.

A artista aventura-se sem preconceitos a conjugar figuração e abstração. Esta conjugação é uma proposta que Dina de Souza decidiu aprofundar e mostrar como a imaginação pode ser tão criativa.

No seu trabalho sobre o Éden, a artista destaca a mulher como seu principal elemento. Contudo, outros se revelam também importantes, nomeadamente a maçã e o tempo, simbolizado pelo relógio.

As mulheres de Dina de Sousa aqui representadas não são figuras escolhidas ao acaso, mas capturadas fotograficamente pela câmara mental ao seu caleidoscópio interno e projetadas plasticamente para a tela. São figuras que representam a "primeira mulher", aquela que na história é associada à serpente que a levou a comer o fruto proibido e que por isso foi expulsa do Jardim do Éden. 

Mas, o que mais cativa na sua pintura, é o modo como as cores e as formas interagem, criando claras atmosferas de sonho em abundância e em que os movimentos visuais são propiciados pela combinação entre elas.

As obras de Dina de Souza que compõem este "Divagando sobre o Éden", que considero, como já afirmei um universo de memórias da artista, composto de instantes, sensações e emoções, não se destinarão à decoração, apenas, de uma qualquer parede e assim ao olhar passivo ou distraído, ou até mesmo contemplativo dum observador de circunstância. Delas ter-se-á que inferir e usufruir de toda uma panóplia de manifestações plásticas subjacente a impulsos interiores da artista, que conduzirão certamente o observador, caso a participação deste seja de facto aberta, ativa e extrospetiva, a que as obras ganhem outro interesse.

A cidade do Porto é um outro tema de eleição para Dina de Sousa.
Poder-se-ia questionar se a sua pintura poderia existir sem a cidade do Porto? Poderia, mas não seria a mesma coisa.

A 21 de Julho próximo, Dina de Sousa vai apresentar na cidade do Porto, o seu mais recente trabalho, "MITOFACTOS O'PORTO", na Galeria Vieira Portuense.

Mais uma vez enfatizo a questão do consciente na criação por ser fundamental o papel desempenhado pela memória, que no caso de Dina de Sousa se expressa de forma muito clara e afirmativa.

Claro que neste trabalho, "MITOFACTOS O'PORTO", a artista recorreu ao seu Imaginário mais recente e a partir de aí, começou a construir aquilo que me parece ser uma homenagem à cidade do Porto.
A concepção do universo portuense é de elevada importância para a artista. A forma apaixonada, elegante e límpida como respira a atmosfera citadina portuense, tem grande influência no modo como experiência, momento a momento, esse continuum espaço-tempo desta sua atual existência.
Em "MITOFACTOS O'PORTO" há questões fundamentais que a artista se propõe construir com simplicidade e espantosa sensibilidade, usando das cores e das formas, uma visão muito especial da multividencia portuense, como dela se tivesse apropriado no mais intimo sentimento da sua beleza e dos seus particularismos, com enorme cumplicidade com a cidade - artista e cidade fundidas num mesmo e único ser.
E uma vez mais a artista considera que a arte apenas funciona, de fato, quando o observador é mobilizado internamente, quer por via de estórias e mensagens que propõe, quer pelo “apelo” à observação de pontes conceptuais capazes de gerar indagações de diversas ordens, quer por questões de estética, ocupação do espaço, cor, forma e equilíbrio.
Deste trabalho "MITOFACTOS O'PORTO" composto por 19 obras, fazem parte, nomeadamente “A Lenda de Miragaia”, a que me vou referir em particular, “A Prisão de Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação” e  “A Lenda de Pedro Sem”.
Na lenda de Miragaia, Dina de Sousa consegue em apenas seis obras mostrar plasticamente o que há de mais marcante e interessante para contar e essa intenção é bem-sucedida quer do ponto de vista do conteúdo temático, quer da harmonia e equilíbrio, nomeadamente da forma e da cor.
Imagino o quanto a artista regrediu no tempo, em voos rasantes e picados, desafiando as leis tridimensionais do espaço-tempo, na firme intenção de trazer para o Agora o que de mais essencial se lhe tornava claro num território que um dia se chamaria Portugal. 
D. Urraca ou D. Gaia como foi também conhecida, chorosa pela traição de Ramiro, seu marido e seu senhor, e pela morte do amante mouro na contenda entre os dois, acabou morta pela espada impiedosa do rei, depois destas palavras:

"Perguntas-me o que miro?
Traidor rei, que hei-de eu mirar?
As torres daquele Alcácer
Que ainda estão a fumegar!
Se eu fui ali tão ditosa,
Se ah soube o que era amar,
Se ah me fica a alma e a vida…
Traidor rei, que hei-de eu mirar?

Pois mira, Gaia! E, dizendo,
Da espada foi arrancar:
Mira Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar!

Ponta Delgada, 1 de Julho de 2012
António Ferreira Pinto

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